Da equipa que trouxe ao Porto a
cultura musical desejada há já muito tempo, depois de tanta queixa nortenha em
relação ao centralismo, este é o festival de quem, por amor e crença na arte,
lutou para que houvesse eventos culturais de qualidade na cidade Invicta,
mesmo que isso nunca lhes trouxesse lucros recompensadores em relação ao
trabalho e suor exigido na tarefa. Mas já todos sabemos que a integridade
artística não faz a vida a muita gente, principalmente na música, onde toda a
gente tem o seu gosto e acaba por se fechar muito em torno disso, criando assim
uma espécie de barreira cultural impenetrável às partilhas e sugestões de
outrem. E muitas dessas gentes, que dizem adorar música, preferem mesmo ouvir o
que acham "comercial", ignorando completamente o conceito de arte,
achando que o melhor mesmo é ouvir o que é conhecido e que passa nas rádios,
porque isso é que é boa música, aquela que enche estádios e aparece nos tops de
vendas. Mas não podiam estar mais enganados, e espero que um dia essa mentalidade
comece a desvanecer. Essa mentalidade que traz argumentos como "sabes
quantos discos vendeu a banda x?" ou "uma banda que enche o Pavilhão
Atlântico não pode ser considerada merda".
A cultura não devia ter preço, e devia ser algo
lecionado nas nossas escolas. Para que é que nós queremos aprender a tocar a
flauta de bisel se depois, no resto da nossa vida, não voltamos a ler uma
pauta? Considero muito mais importante, a um nível de realização pessoal, que
se tente abrir horizontes aos mais novos através de obras artísticas
verdadeiramente relevantes e ensiná-los a apreciar e tirar partido do que tão
bom nos pode trazer a arte. Porque se em Língua Portuguesa se explicam obras
como os Lusíadas e o Memorial do Convento, em Educação Musical devia-se explicar
discos como o Dark Side of The Moon ou o Unknown Pleasures. Porque a expressão
artística pode mudar vidas, mentalidades, e, até mesmo, educar as pessoas. Mas
está-se mais preocupado em formar robots que depois vão seguir uma Engenharia
qualquer só para ter emprego (olá, Luís Miguel Vieira).
Uma das maiores bandas da história do Amplifest. |
E depois de eventos absolutamente inesquecíveis, para mim, como o concerto de Kayo Dot e Isis - entre outras bandas emblemáticas, que muitos se arrependem de ter perdido por falta de conhecimento (como eu), por exemplo: Russian Circles, Mono, Fuck Buttons, A Silver Mt. Zion, Pelican, These Arms Are Snakes e Altar of Plagues - a Amplificasom era a promotora mais badalada e aclamada entre a cultura underground, entre aqueles portuenses, e não só, que sentiam a música de maneira diferente e que andavam atentos ao que se ia passando culturalmente na sua cidade. Na sua cidade e não só: lembro-me de ir ver os Alcest a Braga, e que esse evento teve mão da Amplificasom, mais um concerto para a vida e sua posteridade. Depois de tudo isto, os senhores por trás dessa grande promotora decidiram aventurar-se nos festivais, história essa que já leva na mala a sua terceira magnífica edição, sempre promovendo a integridade artística ao invés do fácil que encheria facilmente o pequeno grande Hard Club.
O Hard Club à chegada. |
É bonito por fora, não é? Como todo o
Porto, já toda a gente sabe. Mas por dentro, pelo menos neste fim de semana,
conseguiu ser ainda mais belo e inspirador. Não falando ainda dos concertos, o
interior do espaço mais emblemático da capital nortenha estava repleto de
coisas interessantíssimas para observar, como cartazes muito mais artísticos do que
publicitários - como se quer –, bancas de discos de várias editoras completamente
desconhecidas ao olhar do comum mortal - e muitas mesmo aos olhos do mais
interessado pelo mundo musical – repletas de pequenas pérolas que nunca
encontrariam numa fnac, com muita pena minha. Um mundo para os “crate diggers”
e um atentado à nossa carteira. Além disto tudo, pôde-se assistir a um filme
que muito dificilmente encontram na internet chamado Black Mass Rising, que eu
não pude ver, com pena, e ainda uma
conversa com um dos senhores por trás do grande festival Roadburn. Um mundo
cultural compactado em dois dias de alta intensidade.
E é depois disto tudo bem assimilado
que aparece a primeira surpresa do festival. Os Zatokrev eram uma banda
desconhecida para mim, mas mal cheguei fizeram questão de me atirar à cara o
quão errado estava. Não sou fanático nenhum por metal, mas este concerto foi
qualquer coisa de estrondoso e impressionante. Riffs criativos e catchy
misturados com as batidas mais propícias ao headbanging que poderão imaginar.
Não fosse o final morno, e a tender para um drone forçado, e teriam sido o melhor
concerto do dia. Espera lá, mas foram mesmo. Mas isto deve-se só à falta de
imaginação de bandas como Deafheaven e Downfall of Gaia que, a mim
pessoalmente, não bateram minimamente e aborreceram bastante. Mas chega de
falar de bandas subpares, quem deu outro concerto muito bom no primeiro dia
foram os Year of No Light e a Evangelista. Os primeiros num registo mais
ambiental e bonito, mas pujante quanto baste. A segunda menina foi mais numa de
fazer o aleatório parecer bom, mas gostei bem mais de ouvir em estúdio. Notável,
porém, a ambiência e estado emocional para onde ela nos leva com a sua voz que,
ora parece saída de uma caixa de música, como logo a seguir nos grita
pertubadoramente, como se a sua alma se estivesse a rasgar. Muito poucos
conseguem fazer o que ela faz a nível de “canções”.
Zatokrev |
Year of no Light |
O segundo dia prometia muito, com os melhores
nomes do cartaz alinhados num curto espaço de horas e algumas grandes surpresas
pelo meio. Uma delas foram os Aluk Todolo, que mostraram que é nos casos de
ignorância que as melhores emoções nos aparecem. Uma lâmpada ao centro do
palco, que parecia alimentada ao décibel do guitarrista que oscilava entre o metal e o post-punk de forma interessantíssima; um baterista
aparentemente lunático mas literalmente genial; e um baixista com as melhores
melodias e um groove fantástico que nos agarrava mesmo quando parecia que o
resto dos membros estavam num desvaneio de pura improvisação. Foram estes os
ingredientes desta receita metal muito krautrock / post-punk / dark ambient que
eu recomendo a toda a gente que se interessar por alguns destes géneros. Duas
horas que passaram a voar, mesmo quando a seguir viria a Chelsea Wolfe. Esta
Senhora, que mais tarde nos viria a brindar com uma aparição masjestosa no
concerto de Russian Circles, tinha a cabeça a prémio como o concerto mais
aguardado do festival. E nunca, em tempo algum, desiludiu minimamente. Nem se esperava
tal coisa, com dois discos como o Apokalypsis e o Pain is Beauty na bagagem era
impossível dar um concerto fraco. Muitos estavam lá apenas para a ver, e a maior parte
ficou surpreendido com a sua altura, mas encantado pela sua capa branca e angelical
e sua voz tão aterradora quanto linda ao recitar as mais belas poesias musicais
ao “som” do contraluz, e deliciosamente ternurenta enquanto agradecia ao público
pelos mais fortes aplausos desta edição do Amplifest. Mas é acompanhada da guitarra
acústica na “Lone” que a nossa diva dos sonhos deixa a poeira
fúnebre assentar, formando assim um lamaçal de emoções díspares imenso com as
lágrimas de todos os que presenciaram o momento.
Aluk Todolo |
Não houvessem os insossos Katabatic
pelo meio e a sala 1 ficaria mesmo inabitável emocionalmente, com o suor que os
Russian Circles nos viriam extraír com as suas mágicas composições e a sua magnífica
química entre guitarra e bateria. Química essa que vem da imaginação e vontade
de fazer algo mais que o simples post-rock de receita como fizeram, por exemplo,
os Deafheaven, disfarçado apenas da tentativa desesperada de fazer algo diferente adicionando batidas de black metal. Aqui
vimos algo verdadeiramente tocante, visceral e sinestésico do início ao fim,
uma lição de como fazer algo no género de uma forma inteligente no século XXI.
Soa-me estranho usar a palavra refrescante no concerto que mais aqueceu as
hostes nestes dois dias, mas é esse mesmo o adjectivo que me ocorre neste
momento. Sabia que o Enter era um grande disco, e era o único que conhecia a
fundo, algo que, ainda assim, não me impediu de adorar o concerto todo, tendo me dado uma
enorme vontade de percorrer o resto da discografia.
Pré- Russian Circles |
E quando as saudades do Amplifest já começavam
a bater à porta, eis que surgem os derradeiros vencedores do prémio “surpresa
do festival”. Os desconhecidos Putan Club deram um concerto enormíssimo, onde
deram uma demonstração genial de “industrial meets post-punk”, a fazer lembrar ligeiramente uns Flux Information Sciences, mas demasiado criativo e envolvente para nos deixar indiferentes,
palavra essa que só com uma negação é que se poderia associar a este duo
fantástico que conseguiu fechar da melhor maneira imaginável este festival
repleto de qualidade. Disseram eles, no final, que, em 18 anos de carreira,
nunca editaram um disco. Pois bem, é nestes casos que se vê a falta que a
Amplirecords anda a fazer à música actual. Então é até para o ano.
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